Admirável Chip Novo

Admirável Chip Novo

Em Admirável Chip Novo, lançado em 2003, Pitty traduziu em música os anseios de uma geração. Duas décadas depois, a pedido dos fãs, o álbum volta à tona ainda mais arejado. “Sabe aquele livro que a gente leu com 16 anos e lê novamente com 20 e poucos? Eu entendo esse processo assim”, explica a artista ao Apple Music. O salto inaugural de Pitty em carreira solo é um convite à reflexão da condição humana. A rapidez da vida, a hipocrisia social e o materialismo são algumas das denúncias de sua rebeldia lírica. “Eu sempre fiz música a partir do texto, especialmente naquela época. As composições não têm uma métrica convencional. A linguagem escrita sempre vinha antes.” Produzido por Rafael Ramos, que assina todos os álbuns da compositora baiana, Admirável Chip Novo conta com participações de instrumentistas ilustres em algumas faixas, com destaque para “Temporal”, com Paulinho Moska (violão), Liminha (baixo), Jaques Morelenbaum (violoncelo), Rick Ferreira (violão), Sacha Amback (bells e sampler), Jota Moraes (arranjo de cordas) e Ricardo Amado (violino). A banda de Pitty era formada por Peu Sousa (guitarra e violão), Dunga (baixo) e Duda Machado (bateria). Em 2023, a artista comemora a atemporalidade de Admirável Chip Novo, agora disponível em Áudio Espacial com Dolby Atmos. “A ideia é festejar com tudo o que tem direito: lançamento, shows e muitas surpresas”, revela. A seguir, Pitty compartilha com o Apple Music suas impressões sobre as músicas do álbum, duas décadas depois da estreia: Teto de Vidro “Escrevi no violão. Na época eu não tinha afinador, então tocava de ouvido, na intuição. Em estúdio, com infraestrutura, acabamos optando por deixá-la mais grave. Faz alusão à máxima ‘Quem não tem teto de vidro que atire a primeira pedra’. É sobre se preocupar com a opinião alheia. Quem é essa pessoa tão idônea que pode apontar o dedo para o outro? No final tem uma parte falada que lembra um rap, que eu também ouvia na época, além de referências de poesia falada, de Patti Smith e do punk rock dos anos 1960 e 1970.” Admirável Chip Novo “Estava influenciada pelos escritores Aldous Huxley, Isaac Asimov e George Orwell. Eu não tinha muito acesso à internet naquele tempo, então trouxe a perspectiva da robótica. É sobre programação social. Qual é o programa? Nascer, crescer, trabalhar, reproduzir-se e morrer. É como se alguém percebesse que está se tornando uma marionete – e quando descobre, tudo se reinicia. Ao trazer para hoje, penso no poder dos dados. Os detentores das informações que oferecemos de graça podem prever o comportamento de populações inteiras. A internet traz uma sensação de liberdade de escolha. Mas será? Não somos sugestionados e monitorados o tempo todo?” Máscara “Eu queria sair um pouco do hardcore. É sobre autoconhecimento, olhar o outro de forma honesta, com respeito à liberdade individual. Questiona o culto à imagem e à hipersexualização das divas do pop. Na atualidade, com o uso excessivo de filtros [que alteram a imagem], por exemplo, muitas pessoas não querem mais lidar com sua aparência real. Que tipo de mundo está sendo oferecido ali? Como diz a música: ‘Ninguém merece ser só mais um bonitinho’. E na época nem existiam todas estas redes sociais.” Equalize “Foi composta por mim e pelo Peu Sousa [guitarrista falecido em 2013]. O baixo foi gravado pelo Liminha. Antes eu tinha vergonha de cantá-la, pois temia que fosse um pouco lugar-comum. Pensava: ‘Quem sou eu para falar de amor no país de Cartola e Noel Rosa?’. Depois entendi ser sobre sexo com uma perspectiva feminina. Não é amor romântico, fala de pele e de cheiro. É o olho que está perto. Brinca com sensações, como em ‘o ritmo rola fácil’, ‘numa frequência que só a gente sabe’.” O Lobo “Sempre gostei de literatura e filosofia. Estava com esta frase na cabeça: ‘O homem é o lobo do próprio homem’, de Thomas Hobbes. Trata-se de precisarmos de uma regulação externa; do contrário, tudo dá errado. Pensei sobre a evolução humana e sua união por necessidade. Por exemplo: ‘Juntos somos mais fortes do que aquele mamute’. E deu certo, né? Sobrevivemos até aqui. Depois li Mulheres que Correm com os Lobos [da psicanalista norte-americana Clarissa Pinkola Estés, lançado em 1992] e a ressignifiquei.” Emboscada “Fala da solidão e do perigo de confiar no outro. ‘Reze suas preces e não conte com ninguém.’ Embora você tenha afetos, há momentos em que ninguém pode salvá-lo, o assunto é com você. Você nasce e morre sozinho. Tem a ver com a autonomia. Você está preso neste corpo e nesta alma. Tem referências de Red Hot Chili Peppers. O Peu [Sousa] imprimiu sua admiração pelo [guitarrista John] Frusciante.” Do Mesmo Lado “Feita em ritmo composto, em 7; geralmente, as músicas convencionais são em 4 por 4. Isso vem da minha exploração com outros ritmos, principalmente jazz e rock progressivo. Fica diferente, esquisito, tem um suingue especial. Já a letra questiona os julgamentos. Com a terminologia de hoje, seria sobre notícias falsas. ‘Quem não viu e mesmo assim falou?’ São perguntas. É um convite ao senso de responsabilidade crítica.” Temporal “O tempo é raro e valioso. Você pode ter dinheiro, mas, sem tempo, não tem nada. ‘Quero uma fermata que possa fazer agora o tempo me obedecer.’ Fermata é uma alegoria da partitura musical para indicar que o maestro pode suspender uma nota indefinidamente. É sobre a vontade de controlar o tempo, a nossa humildade e vulnerabilidade diante da natureza e do envelhecimento. A orquestração e os arranjos são incríveis.” Só de Passagem “Trata da imaterialidade. Não somos o que temos, e o refrão reitera isso: ‘Eu possuo muitas coisas e nada disso me possui’. Tem a ver com a simplicidade e com os valores morais do punk rock. Quando canto ‘Vou pairando leve, leve/ Acima da carne e do metal’, eu me refiro à elevação do espírito. O metal, neste caso, é o dinheiro. É uma crítica à burguesia e suas ferramentas de status.” I Wanna Be “Fui alicerçada pelo rock, embora goste de muitos gêneros. Aprendi inglês com letras de músicas. Tenho uma veia tropicalista de misturar linguagens e idiomas. O título faz ironia a alguém que quer parecer ser: ‘Sorrisos plásticos cumprindo seu papel’. É a hipocrisia social. ‘Flashes capturam a melhor fachada/ Mas quem vê foto não vê coração’.” Semana Que Vem “Existe um cuidado na ordem das faixas. É como um livro, e ‘Semana Que Vem’ faz o papel das reticências. O último acorde é resistente, tem um final aberto. Fala de um otimismo jovem e inocente. Eu perdi meu cachorro novinho em um acidente e, antes, me sentia ocupada demais para aproveitá-lo. ‘Não deixe nada pra depois/ Não deixa o tempo passar.’ Foi um contraponto consciente à música do Renato Russo, que é um hino da juventude e diz ‘temos todo o tempo do mundo’ [‘Tempo Perdido’, da Legião Urbana, de 1986]. Lide com a melancolia do fim das coisas, e não é na hora que você quer: piscou, passou.”

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